No apagar das luzes do ano, o governo coloca para aprovação na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), o projeto para construção de seis Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) pelo Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal (IGESDF). Os votos contrários de alguns poucos deputados não foram suficientes impedir mais um ataque ao SUS, de um governo que foi eleito para administrar o aparelho de Estado da capital da República e não o entregar nas mãos do setor privado.
O que isso representa para a população? Representa perdas de recursos que deveriam ser destinados diretamente às unidades de saúde, sem atravessadores, mas ao invés disso, o governo abre mão de sua responsabilidade constitucional, entregando ao terceiro setor a chave dos cofres públicos. Representa também a falsa ideia de que a construção de novas UPAs vai melhorar a saúde das pessoas, porém, ao contrário abrem-se janelas ao não cumprimento da Lei Nº 8.666, de 21/06/1993, livrando-se das normas para licitações de contratos da Administração Pública, regulamentada pelo art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, logo, é um ato inconstitucional.
Representa ainda a incoerência dos compromissos do governo, que criticou, pesadamente, o modelo do Instituto Hospital de Base (IHB), com argumentos de falta de transparência, compras malfeitas, gastos elevados, altos salários do corpo dirigente, contratações temporárias, regime precário e comissionamentos irregulares. O que assistimos? Mudou o discurso, fez o caminho inverso e, em caráter de urgência, pressionou, ameaçou os parlamentares para criação do IGESDF ampliando para as UPAs e o Hospital de Santa Maria.
Não menos importantes são as Leis Distritais nº 6.270/2019 e 5.899/2017, que determinam que a remuneração dos dirigentes do IGESDF seja fixada pelo conselho de administração da entidade. Esta condição constitui uma vantagem na medida em que as leis referentes a entidades privadas, sem fins lucrativos, anteriores à Reforma do Estado, não facultavam essa possibilidade. Muito mais do que uma vantagem, essa condição torna-se um caminho para a apropriação dos recursos públicos pelo particular e ainda possibilita que os recursos financeiros recebidos configurem como geração de lucro. A natureza não lucrativa deste modelo de contratação é posta à prova pela própria lei que a estabelece, cabendo-nos questionar por que os salários tão compatíveis com o mercado, se a motivação é tão somente o interesse coletivo, o interesse público e a solidariedade social?
Representa, sobretudo, o esvaziamento de uma secretaria que tem por missão organizar Redes Integradas de Serviços regionalizadas, hierarquizadas, descentralizadas e sob controle dos seus usuários. Os serviços privados, quando conveniados ou contratados, passam a ser complementares, devendo estar subordinados às diretrizes do Sistema Único de Saúde e operadas em caráter publico pela Secretaria. Mas o governo inverte os papeis, entregando ao mercado a responsabilidade de cuidar da saúde da população do DF, apesar das manifestações contrarias do controle da saúde. Cabe aí uma ação de inconstitucionalidade.
Representa ainda mais, o não investimento nos funcionários, que, há décadas, vem dedicando suas vidas para transformar a SES-DF em uma instituição capaz de ofertar ações e serviços de saúde, com qualidade, para cuidar, de forma humanizada e acolhedora, da saúde integral das mulheres, crianças, jovens e adolescentes, adultos, trabalhadores nos mais diferentes agravos, desde a prevenção, promoção, tratamento e reabilitação. Essas capacidades não se resumem a consultas médicas e consumo de medicamentos para enriquecer, cada vez mais o mercado da indústria farmacêutica. Trata-se de um desserviço à promoção de vidas saudáveis.
Sensibilizam-se ainda menos com as notícias de que a Lei que criou o IGESDF se vale da porteira aberta do anterior Instituto Hospital de Base, e expande a privatização do SUS, transferindo os recursos e a responsabilidade do setor público para o setor privado. Haja violência, desde a entrega das estruturas físicas (prédios, terrenos, equipamentos, medicamentos, máquinas, gráficas…), passando pelos medos, inseguranças e as diferentes formas de desamparos dos servidores. Esses, que são vitais às instituições do aparelho do Estado, passaram a ser culpados pelas ausências, ou más decisões políticas em implantar o SUS real no DF. O que não é de hoje.
Representa, sobremaneira, o claro posicionamento do governo antidemocrático, autoritário, arrogante, que pensa que governar é apropriar-se do patrimônio do povo do DF e assim poder leiloar os bens da saúde ao bel prazer. Triste como não entende de saúde, e tem posicionamento aberto na privatização do SUS, transformando-se em garoto-propaganda e incentivador do desenvolvimento do mercado da saúde na capital da República. Se não sabia gerir os bens públicos, por que fez falsa promessas ao povo já sofrido pelos descasos históricos da implantação do SUS no DF?
A saída? Não é apenas reagir aos fatos sempre de caráter urgente, no apagar das luzes, mas sim mostrar à população que esse governo não tem compromisso com o SUS, não sabe sequer seu valor, logo, não governa, desmantela a Secretaria de Saúde, e, junto com ela, o fim agonizante do SUS, referência internacional, em prol da privatização da saúde que favorece aos empresários dos planos de saúde e do complexo médico industrial. Construir um subsistema de saúde substitutivo ao SUS significa dar corpo a um sistema absolutamente contrário a todo o esforço que tem sido feito há mais de três décadas para ampliar o acesso e a qualidade da assistência à saúde da população, em cumprimento ao disposto na Constituição Federal de que “saúde é direito de todos e dever do Estado”.
Como até o momento o governo não apresentou uma proposta para fortalecer o SUS no DF e não sabe de que se trata essa política pública, por que não se dedica a estudar para governar? O DF não pode aguentar mais um ano com esse modo atabalhoado de governar.
Quem sabe se calariam as elites econômicas, políticas e corporativas se o governo, de fato, criasse o Conselho de Cogestão, onde a sociedade civil representada pelos múltiplos sujeitos, diversas agendas e diferentes estratégias em uma mesa de negociação permanente, resolvesse exercer o controle social da administração pública? Claro, apontando os caminhos ao fortalecimento do SUS constitucional.
Tamanho silêncio e insensibilidade existiriam se a sociedade fosse politizada e compreendesse, coletivamente, que os governos, ainda que na investidura dos mandatos, não podem impor seus desejos e vontades? Portanto, lhe pressionaria a fazer a rota da humildade, respeito e ética na administração pública.
É chegado o tempo de amplificar o som das vozes de um vir-a-ser permanente, um devir sempre em descompasso. A esperança, portanto, deve ser o néctar da luta diária de uma gente corajosa que vem enfrentando as dores da vida, mas que merece um destino de dignidade. Com a palavra, os poderes fiscalizadores da administração pública e a sociedade civil.