Discurso como Patronesse

Turma 1.2020 de Saúde Coletiva em 26.03.2021

Caros colegas professoras e professores, estudantes, técnicos administrativos aqui presentes, às mães e pais, familiares, senhoras e senhores, minhas queridas formandas e formandos, a partir de agora, colegas de profissão.

Quando fui informada da escolha de vocês para ser patronesse desta turma, fiquei muito alegre e honrada. Não sei expressar a alegria que senti naquele instante. Uma espécie de nó na garganta que me impediu de falar as tantas coisas que vinham em minha mente.

Restou-me apenas um pedido a Alexandre Fernandes: “por favor, agradeça o generoso gesto de cada uma e de cada um, pois, de fato, trata-se de uma homenagem de significado singular”. Assim, aceitei humildemente e agradeci, sensibilizada.

Este reconhecimento e carinho de vocês representa para mim a certeza de que a responsabilidade em ser educadora, mais que professora, me fortalece nessa caminhada, por vezes tão difícil. Saibam que a coragem e a dedicação de vocês para superar os obstáculos durante suas trajetórias como estudantes aqui na UnB alimentam minhas esperanças de um futuro saudável.

Não consigo seguir falando sem registrar minha solidariedade a tantas famílias que perderam seus entes queridos. Solidariedade é a dor dos outros doendo em nós. Não dá para banalizar 303.462 mortes e 12.320.169 casos, dos quais 5.610 óbitos e 335.153 casos são do Distrito Federal.   

A letra da música ‘inumeráveis’, de Chico Cesar, meu conterrâneo paraibano, nos mostra que as vítimas do coronavírus não são meros números, muito menos apenas barras de um gráfico. São vidas, com sonhos, projetos e histórias. “se números não tocam a gente, espero que nomes consigam tocar”, diz o poeta. Acrescento: “nada será como antes … Amanhã” como diz a canção de Milton Nascimento. E quem desejar, simplesmente, voltar à “normalidade”, vai perder uma oportunidade única de mudar e repensar a vida. Mas, ao mesmo tempo, querendo ou não, vai declarar não ter aprendido nada com a experiência difícil da quarentena, do isolamento social, da falta de um abraço apertado, de um cheiro no rosto das pessoas mais queridas, ah! Como dói.

Dói, no peito e na alma, ver o Sistema Único de Saúde, o maior patrimônio do povo brasileiro, se esvaindo pela insuficiência em poder salvar milhares de vidas. Ainda bem que, diferente de outros países do mundo, podemos contar com o sus, apesar dos desgovernos e de tantas tentativas de desmontá-lo. Ainda bem que temos instituições fortes, como nossa UnB e tantas outras que seguem, bravamente, formando profissionais da saúde éticos e comprometidos com a ciência cidadã, com a vida e com a defesa incondicional do SUS.

Em nome de cada uma e de cada um, abraço, fraternalmente, as enfermeiras, enfermeiros e demais profissionais da linha de frente e da retaguarda que convivem 24 horas com a revelação da fragilidade humana, que choram ao ver do idoso ao jovem na luta asfixiante em busca de ar, um bem universal. São profissionais que já não suportam ter em suas mãos fios de vidas, e a impotente agonia de suas almas em ter que decidir quem vive ou quem morre. Tudo pela ausência, negligência e falta de empatia do estado, que nega ao seu povo leitos de UITs, respiradores, medicamentos, equipamentos de proteção individual, profissionais preparados para enfrentar a maior pandemia, a maior crise da história da saúde pública nos últimos 100 anos. Às trabalhadoras da saúde, nossa gratidão por doarem suas próprias vidas, colocando em risco as vidas de seus familiares para cuidar da saúde de cada pessoa como única, singular, e da humanidade inteira.

Formandas e formandos, colegas sanitaristas doravante, não podemos negar esse triste tempo de pandemia(s), fazendo de conta que não há sistemas de adoecimentos. Sim, sistemas pandêmicos, afinal o brasil republicano sequer se livrou de sua maior doença: as desigualdades sociais, expressas nas faces da nossa gente que tenta sobreviver em situação de rua, entre as suas expectativas de ter uma moradia digna, e se vê diante de esmolas de um estado assistencialista e impiedoso. Desigualdades vistas a olhos nus, nas pelejas cotidianas das comunidades indígenas pelo direito à posse de suas próprias terras, dos quilombolas que resistem nas comunidades rurais, à margem e nas margens dos rios Trombetas, Cuminã, Vermelho, Acapu, entre outros, sem falar da solidariedade, que é de sua(s) natureza(s) em partilhar o pão com seus irmãos ribeirinhos. Quem de nós não viveu ou presenciou cenas de sofrimentos ou preconceitos contra a população LGBTQIA+ em espaços públicos, salas de aula ou nos próprios lares?

Quem não sentiu a dor da empregada doméstica Mirtes Renata, ao ver estendido no chão o corpo do seu pequeno filho Miguel, cujo cuidado fora negligenciado por sua patroa? Ali assistimos a mais uma cena das raízes de um país escravocrata. Tocando a alma da cantora e compositora Adriana Calcanhoto, quando doou os direitos autorais da música “dois de junho” ao Instituto Menino Miguel, criado pela família do garoto, junto com a Universidade Federal Rural de Pernambuco. 

A canção traz versos sobre um Brasil racista. Vale-nos um trecho: “no país negro e racista/no coração da América Latina/na cidade do Recife/ terça-feira 2 de junho de dois mil e vinte/ vinte e nove graus celsius/ céu claro/sai pra trabalhar a empregada/ mesmo no meio da pandemia/ e por isso ela leva pela mão/ Miguel, cinco anos/ nome de anjo/ Miguel Otávio/ primeiro e único/ trinta e cinco metros de voo/ do nono andar/ cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar…”. Nós, vocês sanitaristas, precisamos compreender que essas doenças da humanidade não são fenômenos naturais.

O criador da nossa querida UnB, Darcy Ribeiro, já nos alertava: “a crise da educação no brasil não é uma crise, é um projeto. E o projeto das elites mesquinhas, atrasadas, que negam as oportunidades as filhas e filhos do povo brasileiro em poderem entrar, permanecer e serem felizes nos bancos da universidade pública, gratuita, plural, livre, democrática e demasiadamente diversa, com todas as cores da nossa gente. Uma elite que representa a classe dominante que não deixa o pais ir pra frente”.

Espero que vocês escolham o lado certo da história, se quisermos tirar de vez do mapa do brasil essas doenças estruturais. Para isso, faz-se necessário discernimento quanto à dimensão histórica das nossas lutas, ancoradas nos valores duradouros da paz, justiça, solidariedade, generosidade, amor, respeito, tolerância pelas diferenças e diversidade das cores do arco iris que é o povo brasileiro.

Não podemos perder esses valores, pois só assim nutriremos a esperança e a coragem de podermos ajudar a construir um futuro diferente e melhor, deixando nas páginas do passado, as tormentas, turbulências, tristezas em tempos de asfixia. Uma asfixia que faz parte dessa retórica do ódio para nos tirar a esperança, a determinação e a valentia de seguirmos lutando, ainda que nas dores e lágrimas dos que choram.  

Não posso concluir sem agradecer, profundamente, às mães, pais e aos vários modelos de família que não mediram esforços para embalar o sonho em verem vocês aqui, na nossa unb, aprendendo a lição mais nobre da humanidade: defender seus direitos fundamentais de cidadania. Nessa corresponsabilidade, estaremos nos mesmos bancos, ombro a ombro, sem deixar ninguém para trás na estrada vida.

Colegas sanitaristas, partam, mas voltem para seguirmos estudando juntos, numa busca incansável, para que todas, todos e todes, filhas e filhos deste povo trabalhador, possam ser parte da casa de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, e finalmente possamos dizer que a UnB é uma universidade popular, a serviço da educação emancipadora.

Contem comigo para seguirmos mudando o que parece impossível de mudar. Saibam que guardarei esta homenagem entre aquelas que me são mais queridas. Mais uma vez, muito obrigada pela escolha do meu nome como patronesse e pela alegria que me proporcionaram. Recebem meu abraço virtual, com as fibras do meu coração e amplio o coro com maria Bethânia: “eu quero vacina, respeito, verdade e misericórdia” …

Muito obrigada!

 

 

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