As veias abertas das desigualdades em tempos de coronavírus.

Há décadas o Brasil e diversos países do globo (principalmente, mas não apenas os subdesenvolvidos) vivem em disputa entre os modelos e tamanho do Estado. De um lado, os ultraliberais defendem estruturas político-econômicas de redução dos gastos públicos, privatização de estatais, reforma trabalhista, previdenciária, ou seja, afirmam que os mercados seriam capazes de se ajustar por conta própria, com livre concorrência, no processo de autorregulação dos ciclos econômicos. Por outro, estão osque advogam a necessidade de intervenção do Estado na economia como formulador, regulador e fiscalizador das políticas públicas, sobretudo como protetor dos condicionantes e determinantes na qualidade de vida e saúde de um país.

É o intitulado “Estado de bem-estar social”, aquele que administra as situações-problema de sua nação, que se faz presente, fortemente, nas políticas públicas, à proteção social e às prestações de bens e serviços de saúde, educação, segurança, habitação, alimentação, emprego, trabalho, sobretudo, redistribuição de renda, bens considerados direitos sociais.

Portanto, proteger as pessoas significa colocar as riquezas produzidas no país, pelas trabalhadoras e trabalhadores, ao seu próprio bem-viver, ao bem-estar que respeite suas condições humanas, principalmente na grave crise da “COVID-19”, que coloca em risco a saúde e vida de toda a população.

De toda a população, repito, afinal não temos ainda vacina, muito menos medicamentos capazes (sem efeitos colaterais) de enfrentar esse “inimigo invisível”.  Um inimigo que amplia o quadro dos históricos flagelos da exclusão social, abrindo assim as veias das diversas faces das desigualdades.

Abre-se a veia das pessoas que vivem em situação de rua, quando se veem diante desse agravo e a eles é imposto protocolos de quarentena, isolamento, reclusão e medidas de salubridade, mas onde obedecerão aos protocolos? É preciso nos perguntar quem deles dispõe de água, sabão, álcool gel, para citar os itens mínimos a sua “higienização”. Porque proteção seria a presença do Estado, assegurando-lhes um ambiente saudável, não os colocar em salões aglomerando-os em bandos como se animais fossem.

Veias abertas é recomendar as pessoas privadas de liberdade, que já são consideradas em condições de alta vulnerabilidade social devido à posição que ocupam na sociedade, com acesso restrito a bens e serviços e poucas oportunidades. Essas já se encontram reclusas em unidades prisionais, em condições desfavoráveis de habitação, salubridade e acesso às ações de saúde. Com isso, essas pessoas podem ter a saúde física e mental mais comprometidas, se comparadas à população em geral, lembrando que as cadeias superlotadas, com pouca ventilação e pouca incidência de luz solar, apresentam ambiente ideal para a disseminação da tuberculose, gripes e outros agravos à diminuição do sistema imunológico, portanto, ao risco de adoecimento e morte.  

Abertas são as veias dos idosos que vivem em instituições de longa permanência, asilos, albergues, abrigos, retiros, casas de acolhimento, entre outras denominações. O fato é que estes estão cada vez mais lotados e demandados por vagas entre pessoas com mais de 60 anos. Idade de riscos para agravamento de qualquer doença de natureza biológica ou psicológica, em especial pelos enfraquecimentos dos laços familiares nesta “nova” sociedade. Ao lado disso, falta um Estado que compense essa deficiência com políticas públicas que protejam 83.870 idosos desamparados que se encontram em 77% dos asilos cuidados por rede de filantropia, restando à rede pública ou mista atender a apenas 5,5%, segundo dados do IPEA.

Veias abertas são aquelas que sugerem isolamento de famílias que dividem entre três gerações a mesma habitação popular. As filhas e filhos das favelas corporificam-se no espaço da própria ausência do saneamento básico, unidades de saúde, e, sobretudo, do trabalho. Abertas são aquelas veias, que derramam suas desigualdades da população brasileira que vive nas condições de trabalho mais precárias desse mundo. Falo daqueles que se encontram entre a exploração econômica e o desemprego. Exploração econômica que planta na “imagem coletiva” a ideia de empreendorismo, fazendo crer na sociedade que eles são os responsáveis pelo seu fracasso ou sucesso. Assim encontram-se os entregadores de setores de alimentos, os vendedores de pipocas, pessoas que trabalham em bares, restaurantes, agricultores familiares, entre outros que tentam sobreviver a pior crise de empregabilidade já vista no país. 

Assim, a população deseja, ao invés de reformas, receber mais proteção social para enfrentar a instabilidade dos ditos “empregos”, na verdade dos desempregos, e sobretudo, da falta de esperança de ingressar no mundo do trabalho com direitos e segurança trabalhistas, em tempos de desregularização das relações no mundo do trabalho. Nesse momento, os empresários deveriam se preocupar mais com a proteção da saúde dos trabalhadores e com a prevenção, controle e combate à pandemia “COVID-19” e outros agravos que ainda acometem o pais, do que com os lucros ou superfaturamentos com os produtos essenciais.  Por sua vez, os que trabalham no setor informal, ou por conta própria e não podem trabalhar em casa, precisam de incentivos econômicos e fiscais para cuidarem de sua saúde.

Abertas são as veias que pulsam as desigualdades entre os trabalhadores da saúde, sobretudo as(os) enfermeiras(os), que se aglomeram no cotidiano do trabalho, colocando suas vidas e de suas famílias em risco, para salvar tantas outras vidas. Profissionais expostos às precárias condições de trabalho, fruto de históricos desgovernos no trato com o maior Sistema Público de Saúde de todo o mundo: o SUS. É ele que hoje, diante dessa grave situação, com todas as fragilidades, é o único pronto para ir às ruas vacinando as pessoas, acudindo os mais vulneráveis dos vulneráveis. Certamente não são os planos de saúde, limitados e limitantes no acesso aos principais procedimentos que deem conta desse e outros agravos da saúde pública. 

Assim, as respostas não devem se restringir a decretos de calamidade pública, orientações genéricas, ações populistas sem eficácia. Agora é a hora de falar e agir seriamente e de forma serena e solidária em direção ao:

1)    Fortalecimento do SUS, acabando de vez com seu desfinanciamento. Nesse particular, é preciso incorporar aos recursos do SUS não apenas R$ 5 bilhões, ou mais recursos destinados a setor privado. O investimento precisa ser no sistema público, com foco na Atenção Básica, na Estratégia Saúde da Família e na edificação de redes integradas da atenção à saúde da população. 

2)    A necessária e urgente revogação da EC 95, que congela os gastos com as políticas sociais frente ao desastre que significa para a ampla parcela da população, e que por trás da aprovação dessa lei se apresenta um programa de privatização, concentração de renda e exclusão social;

3)    A decisão política em adotar a renda mínima-básica-universal para a população. O projeto que o ex Senador Eduardo Suplicy, sempre cantarolou no deserto, faz-se urgente. É preciso optar pela redistribuição da riqueza nacional, para os que mais necessitam.

Espero que esta pandemia-epidemia não abra, ainda mais as veias das históricas desigualdades sociais, mas que seja uma oportunidade para que a elite brasileira compreenda de vez que o crescimento e desenvolvimento econômico não pode preterir da garantia dos direitos humanos de cada pessoa, nos mais diferentes territórios dos municípios e estados do pais.  

Sigamos defendendo que os investimentos nas políticas públicas seja o único e certo caminho. Pois muitos são os descaminhos de governos que teimam em não gerir o Estado de Bem-Estar-Social a serviço de sua gente. Logo, não pode haver mais espaços para novas desigualdades, cujas veias extrapolaram os limites do humano. Faz-se necessário um Estado solidário, cuja prioridade em seu povo esteja sempre à frente do poder, do consumo destemido e do egoísmo dos lucros exacerbados.

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