Muitos conhecem a origem da palavra Ciência, que vem do latim, scientia, e que pode ser traduzida por conhecimento ou sabedoria. Não apenas duplas palavras, sem sentido societário no horizonte dos valores democráticos. Ainda que possamos compreender que todo conhecimento implica em poder, e este deve ser traduzido, melhor, ocupado para servir, com audácia, aos bens civilizatórios das instituições, pessoas e da humanidade.
E combinando com a sabedoria, fundamentada nas responsabilidades éticas, políticas e sociais à eliminação das enfermidades, faz-se necessário perguntar ao Estado e muitos dos seus Governantes, por que ainda omitem informações sobre suas condições de saúde e doenças, sabendo que se trata de informação de interesse público e que, nessa situação específica de grave anormalidade sanitária (crise de pandemia), o direito coletivo se sobrepõe à individualidade ou privacidade dos dirigentes públicos. Lembrando que não há nenhum direito fundamental absoluto e que o Artigo 37 da Constituição estabelece o princípio da publicidade, entre outros, como bases orientadoras da administração pública. Se os exames têm diagnóstico positivo, a autoridade pública responde em, pelo menos, quatro artigos do Código Penal – 131, 267, 268, 330[i].
Assim, é de direito coletivo saber quem está contaminado com o vírus, para evitar disseminação em massa, principalmente vindo de quem deveria adotar o isolamento social, como estratégia de prevenção da doença, promoção da saúde e defesa da vida plena, feliz e amorosa de sua gente.
Nesse ínterim, destacam-se a mentira, a arrogância, truculência, ironia, egoísmo, desrespeito, entre outras moléstias que agravam e ampliam apologias a ignorância advindas da erudita pseudo scientia.
Trata-se da mesma falsa ciência que nos destaca o historiador Robert N. Proctor[ii]. No livro “Agnotology: the making and unmaking of ignorance”, ele destaca como são fundamentadas as políticas de produção da ignorância junto à sociedade a partir de ações midiáticas. Nela, o maior produto é a dúvida criada nas mentes da população a fim atingir a controvérsia e, com ela, serem elaboradas as manobras políticas associadas à ignorância radical.
Eis que a mentira se firma como o pecado que pavimenta todos os demais pecados da modernidade, como nos afirma o filósofo e neurocientista Sam Harris, em seu livro “Lying” (2013). Acrescento, não só deixa enfermo aquele que omite ou falseia a verdade, todavia, amontoa-se em seu entorno uma espécie de vírus, capaz de contaminar toda a arqueologia dos entes (pessoais e institucionais), mesmo aqueles já vacinados contra essa doença.Verdadeiramente uma indisposição, uma espécie de febre que arde nas veias e artérias do coração, confundindo os sinais da realidade, embaralhando com uma narrativa que serve somente para desconstruir a verdade, logo, sem diagnóstico e terapêutica ao fiel tratamento do mal.
A arrogância não é apenas um microrganismo, bactéria, agente definidor no “exame de saúde”, da ausência de humildade, respeito ou tolerância. Ela é a principal causa da “quebra” de harmonia nos relacionamentos interpessoais, profissionais e institucionais. E, sobretudo, uma virulência capaz de contaminar o trabalho em equipe nas organizações e do sucesso nas relações sociais. Eis um diagnóstico assertivo: arrogância, você necessita sair da lista das piores moléstias que afligem os direitos humanos em suas diferenças, necessidades e expectativas, na construção de outras formas de conhecimentos e saberes, onde todas as vidas importam. Aqui, no país da constituição cidadã, não cabe a racionalidade do pensamento ultraliberal, de uma “ciência econômica”, que julga poder exercitar escolhas seletivas de quem vive ou morre.
Fica a pergunta: Que tem direito à vida, a mãe, avó de bilionários(as)? Ou as(os) jovens filhas e filhos do Sol Nascente, Por do Sol (Ceilândia), Estrutural, Santa Maria, (DF); Rocinha, Rio das Pedras, (RJ); Baixada da Estrada Nova Jurunas, Belém (PA); Casa Amarela, Recife (PE); Paraisópolis, Heliópolis (SP) e Cidade de Deus, Manaus (AM)? Só para citar alguns territórios mais populosos que superam milhares de municípios brasileiros de médio e pequeno portes. Não! Não podemos aceitar a ironia, sequer dos destemidos destinos.
A ironia é o sinal e sintoma de agravos que indicam manifestação ao sentido avesso do que se deseja como saudável nas relações humanas. Afinal, achincalha, maltratada, fere e adoece a saúde mental dos sujeitos coletivos, promotores de ambientes verdadeiramente saudáveis. Pois sua raiz é construída de expressão literária ou em figura de retórica, de linguagem contrária ao que se deseja anunciar. O filósofo francês Guy Debord[iii] quando escreveu “A Sociedade do Espetáculo”, propôs que, “no mundo moderno, somos induzidos a preferir a imagem e a representação da realidade à própria realidade concreta”. Ou seja, caminhamos para espetacularização das nossas vidas, para um gradual empobrecimento das relações humanas. Onde chefes de Estados-Nações salteiam pelas ruas, incentivam tumultos. Há doença maior nas sociedades ditas líquidas ou modernas?
É esse egoísmo, quanto aos valores da saúde e vida, que se apresentam piores que o coronavírus. Como podemos assistir indiferentes à redução de recursos à OMS, uma das organizações mais fortes das Nações Unidas (ONU)? Justamente quando a necessidade de saúde global e da união para gerarmos forças à comunidade científica internacional. É preciso condições para que se possa trabalhar para barrar o vírus, sem fronteiras, e suas mortes em massa, que causam dores, sofrimentos, perdas profundas de vidas que devem ser respeitadas em sua dignidade.
Lembremo-nos que o desrespeito, por sua vez, fere mortalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). E isso se dá quase 72 anos depois de sua publicação, em um país, cuja missão é produzir conhecimento e sabedoria à defesa dos direitos humanos, sobretudo, em momentos de crises múltiplas, e onde o discurso do ódio se eleva. Essa doença tem que ser tratada cotidianamente, para evitarmos que o vírus da maldade siga se espalhando pelo chão das “fábricas de ciência”.
Assim, nós, professores(as), estudantes, técnicos(as) administrativos(as), gestores(as) públicos(as), devemos evitar as liquidezes das relações institucionais e, quiçá, pessoais, por dever de oficio e por decidido posicionamento ideológico, político, ético e social. Nesse sentido, aproximamo-nos da teoria do sociólogo polonês Zygmunt Bauman[iv] sobre a sociedade líquida. Por “líquida, entende-se uma sociedade em que não há papeis sociais rígidos nem certezas sólidas. Tudo, portanto, é fluído e não somos obrigados a assumir um compromisso duradouro com qualquer papel social ou pessoa”.
Se assim for, estamos perdendo as referências às proposições e construções de sociedades sólidas, logo, verdadeiras, humildes, respeitosas, livres e justas. Se as instituições de ensino, desde a primária até a superior não zelarem por esses fermentos, quem o fará? E tantas outras gerações, décadas, séculos adentro seguirão sem a resposta, e mais grave, matando os valores da nossa humanidade. É preciso por fim à mentira, a arrogância, truculência, ironia, egoísmo e ao desrespeito. Afinal, o que é ciência? Acrescentaria, e para que serve, se não para manter-se a serviço do desenvolvimento integral da vida.
[i] Artigos do Código Penal (CP): 131: “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”; 267: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”; 268: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”; 330: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”.
[ii] Proctor, RN.; Schiebinger, L. (Ed.). Agnotology: the making and unmaking of ignorance. Palo Alto: Stanford University Press, 2008.
[iii] Debord, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos. Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[iv] Bauman, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001.