Tomo emprestado o título do livro organizado pelos professores Waldir Rampinelli, Valdir Alvim e Gilmar Rodrigues[i], da Universidade Federal de Santa Catarina, de que recomendo leitura, não só por se tratar de uma obra cujos autores nos instigam a pensar o cotidiano da vida universitária, mas pelo imbricamento dos 14 artigos que nos convocam fortemente a nos preocupar com a ruptura do discurso e da prática democrática no interior da instituição chamada universidade, que por princípio deveria ser o berço do exercício, em profundidade, da democracia como bem civilizatório.
A defesa compromissada com um ensino que se inspira nas ideias filosóficas de John Dewey (1852-1952), segundo quem a democracia e a liberdade de pensamento são instrumentos vitais à maturação emocional e intelectual das crianças, vale mais ainda para os(as) adultos(as). Estes(as) devem ficar atentos(as) para que seus atos, em exercício do poder delegado, não coloquem embaixo do tapete as formas instituídas de democracia.
Negar falas legítimas dos contraditórios, interromper a essência do pensamento plural, alimentar o mandonismo, o corporativismo, o individualismo, elementos contaminadores, adoecedores e mortais para o tempo, sem precedência histórica de (des)governo e de suas crises multifacetadas, já está démodé: no bom português, fora de moda, completamente ultrapassado.
Este é o momento em que a sociedade, os republicanos, os democratas, os institucionalistas e os segmentos populares exigem de cada um de nós a severidade e o compromisso de revisitar e reinventar conceitos, princípios e valores fundantes do movimento da Escola Nova, liderado por Anísio Teixeira – ele, que nunca abriu mão da coerência entre a teoria e a prática do exercício permanente da democracia como semente essencial à educação autônoma, emancipadora, na perspectiva da construção de uma sociedade justa e livre.
É o momento de reafirmarmos em nossos atos o nosso compromisso educativo. Precisamos de transparência e lucidez para que não nos afastemos dos princípios democráticos, sobretudo nas universidades.
“Enquanto os homens exercem seus podres poderes”[ii], a democracia encontra-se ameaçada pelas mais de 36 mil mortes, pelos casos incontáveis de contaminação por um vírus denominado por todos nós, sanitaristas ou não, de “inimigo invisível”, pelas dores e sofrimentos de milhares de famílias que não têm condições de ficar em casa, de desempregados(as), subempregados(as), trabalhadores(as) informais, todos(as) filhos(as) da crônica apartação abissal e secular de um Brasil que se encontra entre os países mais desiguais do planeta.
E o Brasil é, agora, o segundo país em que mais se morre pela pandemia do Covid-19. Hoje, mais do que nunca, é necessário que todos(as) defendamos o caráter público da saúde, da educação, da ciência e, sobremaneira, a democracia das nossas instituições. Se assistimos à elite reproduzindo essas faces perversas, desumanas, de geração em geração, da miséria humana, engana-se quem pensa que uma cesta básica, ainda que alivie a fome momentânea, quebra a hegemonia do poder da casa grande ou do racismo estrutural enraizado em nossa sociedade.
Engana-se quem pensa de modo pueril que há saída fora da política, em geral, e da política educacional, em particular. Logo, a universidade precisa saber que tem tudo a ver com isso. Ou melhor, precisa saber que muito pode fazer para ajudar a redesenhar este cenário triste que nem João Cabral de Melo Neto foi capaz de descrever em “Morte e vida severina”[iii]. Ela é um tema central. Por mais que estejamos firmes e dispostos a contribuir com a recriação de um outro “modo cultural”, devemos enfrentar o problema como ele é. Não é suficiente olhá-lo; é preciso enxergar suas raízes e assim desvelar – em todos os campos do saber – a origem e as conexões condicionantes e determinantes desse modo produtor das dores dos nossos irmãos de sangue e de vida.
Trata-se de um imperativo ético que nos impõe a reconstrução, para os tempos de hoje, do futuro da nossa universidade. Que ela seja a cidade, a cidadania, com a qual não se deve arriscar romper jamais. Ela deve alargar-se, sempre, com a participação promotora do sentido de pertencimento por toda a sua comunidade acadêmica. Caso contrário, sua democracia será ameaçada; e, como diria Caetano, “não precisamos de ridículos tiranos”.
[i] Rampinelli, W.; Alvim, V.; Rodrigues, G. Universidade: a democracia ameaçada. São Paulo: Xamã, 2005.
[ii] Caetano Veloso. Podres poderes. 1984.
[iii] Melo Neto, J. C. Morte e vida severina e outros poemas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007.