O que significa educar em um tempo para o qual não estamos preparados(as)? Um tempo cujo relógio nos arrasta avassaladoramente, entre suas horas, minutos e segundos, sem que tenhamos fôlego para sequer imaginar que um dia iríamos vivê-lo? Estou entre aquelas pessoas que, até então, jamais haviam se deparado com a possibilidade de uma situação em que viéssemos a conviver com determinados tipos de privações, a exemplo do confinamento em nossas próprias casas, mas mantendo-nos em determinadas atividades – teletrabalho, acompanhamento escolar remoto de filhos(as) – e fugindo da desinformação, em uma conjuntura absolutamente atípica e entristecedora, que nos causa estranheza frente aos novos modos de convivência com os quais nos deparamos durante a pandemia do Covid-19.
Nesse sentido, devemos dialogar exaustivamente sobre os desafios que estamos enfrentando para manter as nossas antigas tarefas e as novas que surgiram, bem como as perspectivas que alimentávamos quanto ao pensamento educativo que nos norteava e que hoje se redesenha em linhas e traços nem sempre firmes e retos. A situação da pandemia tem sido marcada por inúmeros problemas que têm proporcionado mudanças na lógica em que estávamos inseridos(as) socialmente.
Enquanto isso, o país agoniza pela desgraça das mais de 33 mil mortes por coronavírus e das violências domésticas que invadem as residências, pela falta de trabalho, renda e abrigo, pelas desigualdades sociais das diversas ordens e ainda pela ansiedade, pelo stress e pelas incertezas alojadas entre os(as) milhares de jovens que estão fora das salas de aula tradicionais e que sequer conseguem alimentar a esperança de nelas adentrarem, em especial nas salas das universidades públicas. E os(as) que nelas estão não sabem ainda ao certo como manter sua formação em andamento nesse modelo de aprendizagem que ainda desconhecemos – refiro-me aos(às) estudantes e seus(suas) professores(as).
É em momentos assim que brotam aos nossos olhos as 47 milhões de pessoas que seguem desconectadas entre as classes D e E, segundo nos aponta a recente pesquisa TIC Domicílios de 2019, realizada no território nacional entre outubro de 2019 e março de 2020 e lançada no último dia 26 de maio. Vale ainda observarmos os 72% de indivíduos que não possuem habilidades com o uso do computador, 37% que não têm onde usar a internet e outros 45% que não a utilizam por ser muito cara ao seu orçamento, afora os que não possuem sequer ambiência para estudar.
No cenário de isolamento social – não de afastamento do trabalho, que agora é remoto e em casa, como vimos, apenas para uma parcela de trabalhadores(as) – é que os reencontros têm acontecido: os reencontros entre as famílias, com os afazeres domésticos rotineiros, com as fragilidades advindas da pandemia e o reencontro consigo mesmo. Foucault[i] (2010, p. 6) nos diria que “é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidado contigo mesmo”. Nessa parada dos ponteiros do relógio de nossas vidas, observamos o tempo em câmera lenta quando comparado com as nossas rotinas passadas. O que antes era velado pelas ausências agora exige cautela pela presença constante e nem sempre desprovida de afazeres mediados por tecnologias as mais diversas, muitas das quais ainda não dominamos.
O Covid-19 nos colocou cara a cara com as nossas fragilidades e limitações e com problemas de natureza pública e privada. Estamos na posição vertical que nos coloca diante da certeza de que, a qualquer momento, podemos nos contaminar, adoecer e até morrer, não importando a classe social, ainda que saibamos que a mais atingida é a que historicamente vem sendo excluída de viver e trabalhar em territórios saudáveis.
Mesmo isoladas(os) em nossas casas e trabalhando muito, talvez até mais do que trabalhávamos antes, temos exercitado a superação constante de nossos limites, involuntariamente, algo que Mandela experimentou em sua vida no cárcere: sem muros ou defesas (MATEUS, 2014).[ii] Se sairemos melhores ou piores dessa experiência ainda não sabemos. O que dominamos, por ora, é a complexa certeza de que precisamos nos refazer nesses reencontros, para nos defrontarmos com a pós-pandemia.
Permitam-me refletir sobre esses desafios que nos aguardam na pós-pandemia em duas dimensões: a primeira é a nossa necessária e urgente autoeducação, ou podemos chamá-la de “educação de si mesmo”; enquanto a segunda é a educação do outro, em especial das centenas de jovens que nos aguardam na retomada de nossas atividades, mesmo que ainda desconheçamos quando e como. A nossa rotina de educar, o nosso trabalho pedagógico educativo com estudantes, colegas de docência e de gestão técnica na rotina das nossas universidades também precisará de reorganização de todas as partes, pois as vidas ainda seguirão em recuperação das graves crises sociais, políticas, econômicas e institucionais em curso.
As métricas científicas depuraram-se e ganharam visibilidade e força frente à urgência do invisível, mas também precisam retornar aos laboratórios agora reformuladas por imposição das tecnologias que moderam o ensino e a aprendizagem de professores(as) que não criaram disciplinas para a modalidade à distância, que não tiveram seus conteúdos adaptados a tempo e cujas habilidades ainda não foram testadas para esse fim, em particular nos cursos extremamente presenciais.
É óbvio que o ensino à distância é uma saudável realidade que aporta aos processos educativos. É uma grandiosa contribuição, mas apenas quando em seu nascedouro estão contidas as bases sólidas do planejamento de conteúdos, do desenho instrucional necessário ao bom desempenho do material a ser levado aos(às) estudantes via ambientes virtuais de aprendizagem previamente constituídos, sem arremedos e sem os referidos custos/benefícios que “enriquecem outros modelos de educação”.
Precisamos urgentemente compreender que a formação de profissionais está em cena e que o resgate dos nossos espaços sociais, humanizados e coletivos faz-se necessário para que o aprendizado venha a ocorrer nas duas dimensões às quais me referi anteriormente. Urgente se faz nos reeducarmos para educarmos intensamente aqueles(as) que aguardam por nós, mas também os(as) que anseiam por juntar-se a nós na utopia das trocas do aprender a conhecer, a fazer, a viver com os outros e a ser para além do virtual.
No tempo chamado agora, em que somos obrigados(as) a nos recompor na situação adversa de isolamentos, de problemas, de doenças que nos acontecem e sobre as quais não temos nenhum controle, também se faz necessário que reflitamos sobre as coisas consideradas positivas para as nossas vidas, o que somos e seremos capazes de produzir a partir desse evento sanitário e quais exemplos serão fixados no tempo de renovação dos valores hoje vistos à distância, mas que em breve, muito em breve, estarão diante de nós, sem intermediários, sem dispositivos de acionar ou não a câmera ou o microfone das inúmeras salas virtuais as quais temos visitado nos últimos meses.
“Vou manter nossa promessa: nunca, jamais, em quaisquer circunstâncias, falaremos alguma coisa imprópria sobre o outro…” (MANDELA, 2010, p. 20)[iii]
[i] FOUCAULT, M. História da sexualidade: o cuidado de si. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
[ii] MATEUS, A. Mandela – a construção de um homem. Lisboa: Oficina do Livro, 2012.
[iii] MANDELA, N. Conversas que tive comigo. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.