Quando falamos de política, qualquer sinal de neutralidade, significa ser conivente com as doenças e perversidades que o país vive, desde o período colonial, aos dias atuais. Não podemos naturalizar as 600.829 mortes que poderiam ter sido evitadas, os 21.567.181 casos de Covid-19 confirmados, sem falar nas subnotificações. Isto, sem esquecermos as atrocidades cometidas pela Prevent Senior, que, silenciosamente, elegeu quem deveria morrer ou viver na pandemia e que somente vieram à tona agora, no Senado Federal, a partir dos depoimentos de médico e sobrevivente, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
Na situação em que o Brasil se encontra, acreditar em neutralidade política tem sido o caminho de alguns, que fecham os olhos para 221.869 pessoas vivendo em situação de rua, cujo perfil foi alterado nessas tristes crises econômica e sanitária. Antes da pandemia, era uma maioria de homens solteiros que viviam em situação de rua. Hoje, são famílias inteiras, incluindo mulheres, crianças e idosos em apenas um ano.
Quando políticos fecham os olhos, em nome da neutralidade, para a “Campanha despejo zero, pela vida no campo e na cidade” por proteção à moradia durante a pandemia, trata-se de covardia. Do mesmo modo, é um ato covarde dar as costas para mais de 40 organizações do campo e da cidade que se uniram em recente ato político e cultural pela proteção à cidadania, bem como ignorar as recomendações internacionais para que não ocorram despejos durante a pandemia.
E o que dizer daqueles/as que não dão uma só palavra no Congresso Nacional ou na Câmara Distrital, cobrando das autoridades instituídas que cumpram as orientações da Comissão de Direitos Humanos da ONU a não praticar a remoção forçada neste momento da pior crise sanitária do último século? Ora, é não ter sensibilidade para assegurar um teto, com dignidade, às 340% famílias despejadas somente no último ano.
Não lhes toca os corações saberem que nos últimos 12 meses, mais de 21.725 famílias foram despejadas? Mulheres, crianças e idosos tiveram que deixar suas casas para se abrigarem debaixo das pontes, ruelas, enfrentando frio, chuva, sol e outras intempéries. É preciso que alguém lhes recorde que o número de pessoas abaixo da linha da pobreza já atinge 12% da população, o maior índice em nove anos.
São quase 28 milhões de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza, por consequência do alto desemprego e inflação, enquanto isso, aqueles que deveriam cuidar da economia brasileira e distribuir as riquezas produzidas no país, de forma igualitária e justa, alteram o curso das políticas públicas para enriquecimento nos paraísos fiscais e ainda se negam a atribuir uma renda básica para todos, em nome de uma economia voltada para o livre mercado, por meio de ajustes fiscais e reformas do Estado brasileiro (previdenciária, trabalhista e administrativa).
Neutralidade, não dá. Essa posição aprofunda o futuro aterrador que nos cabe modificar, no presente. Lembro de Walter Benjamin (1892-1940) (1), às vésperas do nazismo tomar conta da Alemanha, falando que era preciso puxar o freio de mão da história. Estamos na mesma, com a ascensão do fascismo no Brasil. Nos vale lembrar que as grandes tragédias da humanidade já nos ensinaram, que mesmo estando no mesmo barco diante da tempestade, alguns têm iates, outros pequenas canoas, e milhares se afogam à deriva em alto mar, logo, não podemos ignorar os corpos que atracam na areia.
Para mim, é um dever ético levar a política a sério. Não é de uns poucos, mas, em princípio, de todos, a urgência da ética no exercício da política, com dignidade. Como afirma Hannah Arendt (1906-1975): “Liberdade política é sinônimo de ação. A humanidade só se torna livre, de fato, ao agir e decidir, em conjunto, seu futuro comum”. (2)
P.S.: Dados extraídos a partir da pesquisa Desigualdade de Impactos Trabalhistas na Pandemia, de setembro/2021 – Fundação Getúlio Vargas.
(1) Benjamin, W. Origem do drama trágico alemão. Ed. e trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
(2) Arendt, H. A dignidade da Politica: ensaios e conferências. (Org. Antonio Abranches). Trad. Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume-Damará, 1993.