Desde que subiu ao trono de Pedro em 2013, o Papa Francisco imprimiu à Igreja Católica um vigor reformador que sacudiu estruturas, desafiou ortodoxias e devolveu à fé seu rosto mais humano. Em tempos de muros, medos e exclusões, ele escolheu pontes, coragem e acolhimento, uma liderança espiritual que reconecta o sagrado à dor do mundo.
Primeiro papa latino-americano da história, Francisco trouxe à tona uma Igreja mais próxima dos pobres e vulneráveis, desafiando tradições de formalismo e rigidez. Ele fez da periferia – geográfica e existencial – o novo centro de sua ação. Em visitas a comunidades marginalizadas, campos de refugiados e prisões, mostrou que o cuidado pastoral começa escutando os que historicamente foram deixados à margem.
Ele também não se furtou a denunciar as feridas do nosso tempo, como a injustiça social, a desigualdade econômica, a crise ambiental e o drama das migrações. Enfrentou temas espinhosos: a acolhida de imigrantes e refugiados, os direitos das pessoas LGBTQIA+, a proteção dos pobres e a crítica aos excessos do capitalismo. Sua liderança rompeu barreiras, inspirando católicos e não católicos ao redor do mundo e entre suas contribuições está o fortalecimento do diálogo inter-religioso.
O papa promoveu encontros históricos com líderes muçulmanos, judeus, budistas e de outras tradições, afirmando que a convivência pacífica é, não apenas possível, mas necessária em um mundo dividido. Seu gesto mais emblemático foi o “Documento sobre a Fraternidade Humana”, em Abu Dhabi, em 2019, um chamado pela paz e pela convivência entre os povos.
No campo ambiental, sua encíclica Laudato Si’ (2015) foi divisor de águas. Nela, colocou a crise climática como uma questão moral e espiritual, convocando toda a humanidade para uma “conversão ecológica” que repense nosso modo de vida e relação com a natureza. Sua defesa da causa comum ecoou interncionalmente e influenciou debates globais sobre meio ambiente.
Entretanto, seu papado também foi um tempo de tensões, pois enfrentou resistências internas, tanto dos conservadores, que consideraram suas posturas ameaçadoras à tradição, quanto de progressistas, que às vezes o julgaram tímido em promover mudanças mais profundas. Mesmo assim, manteve-se fiel à sua visão: uma Igreja que, como hospital de campanha, acolhe os feridos do caminho.
Além das grandes ações públicas, dedicou-se a um trabalho de reforma espiritual mais silencioso, mas igualmente profundo. Alertou contra o que chamou de “doenças da alma” – como o medo, o preconceito e a falsa religiosidade, que geram exclusão; a indiferença diante do sofrimento alheio; o “Alzheimer espiritual”, que faz esquecer a memória do amor de Deus; e o “martismo”, ou ativismo vazio, que sufoca a interioridade. Com isso, antecipou o diagnóstico de outras doenças universais da humanidade: a arrogância moral, a cobiça disfarçada de zelo e o fechamento insensível diante da alteridade.
Sua pedagogia é a da inclusão e da esperança. Em um mundo tentado pela polarização e pelo individualismo, Francisco convida à construção de pontes, não de muros. Seu exemplo recorda que a fé autêntica é inseparável do compromisso com a dignidade humana, com a justiça social e com o cuidado dos mais frágeis.
Ao completar mais de uma década de pontificado e depois partir para a eternidade, deixa como legado uma Igreja mais atenta às dores do mundo e uma mensagem que transcende fronteiras religiosas: a de que outro futuro é possível, se construído sobre o respeito, a solidariedade e a compaixão.
Em breve, o conclave anunciará o novo pontífice. Será este novo líder capaz de sustentar os avanços deixados por Francisco e caminhar adiante? Caberá a ele manter viva a chama de uma Igreja aberta, sinodal e corajosa, e reencantar as juventudes com uma fé que se renova na escuta, na ousadia e na ternura.
Porque não basta repetir gestos simbólicos, será preciso discernimento, empatia e disposição para enfrentar as mazelas da humanidade e das instituições. Que não se perca o que foi plantado, pois é urgente extirpar, com firmeza e delicadeza, os vírus da convivência que corroem a dignidade nas estruturas coletivas: a fofoca travestida de zelo, a inveja camuflada de crítica, a arrogância dos que confundem hierarquia com superioridade e toda forma de vaidade que transforma o servir em palco de vaidades. Que os ventos soprem contra os que, com ambição, desconfiança ou apego ao passado, desejam apenas preservar privilégios ou restaurar catedrais que já não tocam os corações.
Artigo publicado no Correio Braziliense, 05/05/2025.